pausa para uma história verdadeira
- A gente não se lembra de quem quer bem à gente?-
...
- Vocês não me saem do sentido-
Mavilde
telefonema
Abril 2011
“Estou muito contente com o 25 de Abril”...
- Vocês não me saem do sentido-
Mavilde
telefonema
Abril 2011
No dia em que a brigada das campanhas de alfabetização promovidas pela Pró-UNEP (União Nacional dos Estudantes Portugueses) chegou ao lugar de Sanfins, no distrito de Braga, Mavilde teve um relampejo de esperança e acreditou que por fim a libertação estava a passar por ali.
“São vocês que vêm ensinar as pessoas a ler? É que eu quero, porque não sabia ver as horas e um dia pus um relógio à minha frente e não saí de lá sem saber ver as horas. Agora quero aprender a ler!”. Rosário Melo, uma jovem estudante que, à semelhança de muitos outros, integrou as campanhas de alfabetização durante as férias do Verão de 1974, jamais esquecerá a abordagem daquela mulher analfabeta do lugar de Sanfins, com quem almoça quase todos os anos, desde há dez, no dia 25 de Abril.
“Pus-me a pé a umas oito horas e diziam que em Lisboa tinha havido por lá uma revolução”, recorda Mavilde no seu modo particular de rememorar os tempos idos. Mas em lugar de Sanfins não se passou nada, como se essa tal revolução fosse mesmo apenas e somente uma coisa vivida na distante capital. Até ao mês de Agosto, quando verdadeiramente tudo mudou. “Vieram dizer-me que andava um grupo de estudantes de Lisboa que ia ensinar o que eram os partidos e a ler e a escrever. Perguntaram-me se eu queria e eu disse que sim. Passados uns dias, começaram a dizer: ‘não vamos que são comunistas, não vamos que são comunistas’ e deixaram de ir por causa disso. A mim não me interessava que fossem do que fossem. Deram-me a graça de Deus. Queriam que eu deixasse de ir porque tinham medo do que me pudesse acontecer. ‘Não vás, que dou-te uma rasa de grão’ (o equivalente a um alqueire, ou seja, cerca de 16 kg de milho). Tinham medo que eu corresse perigo, mas eu comia aquilo, e depois? Os ricos queriam era que a gente trabalhasse de graça”. Menos saber ajuda a controlar a insubordinação. Mas Mavilde nunca foi mulher de virar as costas à vida, e quando considerou que não continuaria a trabalhar a troco de uma côdea de pão que não chegava para encher, sequer, a boca de um dos filhos, quanto mais dos três, bateu o pé. Bem cara lhe saiu a atitude, que ver os filhos a passar fome é doloroso demais para qualquer mãe.
Ousem lá dizer a esta minhota que no tempo do Salazar é que era bom, que vão ver. Se há quem tenha esquecido a fome que se passava, Mavilde não é certamente uma delas. “Passei muita, muita, fome!” diz constantemente, como uma reafirmação de si mesma, um sublinhado da gratidão que sente por aquilo que possui hoje. Viveu uma fome tão constante e grande que, “quando passava o homem da sardinha a apitar a gaita, eu punha-me a cantar muito alto para os meus filhos não ouvirem e as vizinhas não perceberem que eu não tinha dinheiro para comprar. Passei muita fome”. Em 1965, tinha então 31 anos, viu o marido partir “a monte” para França, com a ajuda de um passador a quem pagaram 14 “contos”. Desse montante que ajudou a reunir nunca recebeu o retorno. Durante quatro anos e quatro meses bem contados por Mavilde, nunca o homem lhe mandou um tostão, e notícias vazias do essencial só muito de quando em vez, umas cartas que pedia “ao povo amigo” lhe lessem. Com um filho de 22 meses e outro de 14, foi trabalhar para as terras “dos ricos” levando-os consigo sempre que possível. “Quando podia, metia ao bolso pãozinho e o que pudesse para dar aos filhos. Uma vizinha, que tinha um marido feiinho mas muito poupado, que também estava em França, ia-me ajudando e quando não podia, fazia a comida e chamava-me para ir lá comer com os meus filhos. O frio que a gente passava…A fome que a gente passava…”. Quando, em 1969, o marido voltou de férias para ver os filhos, instalou uma francesa, que entretanto por lá arranjara, em Aveiro, e a quem dizia ser viúvo. “Ela queria conhecer os filhos e ele dizia-lhe que viviam com uma madrinha”, mas a mentira tem perna curta e Mavilde apercebeu-se da marosca, embora ele fosse à aldeia e dormisse com ela. “Arranjou-me a filha e foi-se embora. Antes, ofereceu-me um fio de ouro, grosso, e comprou outro para a francesa, mas mais fininho”, relata entre gargalhadas, acrescentando que rapidamente o vendeu para comprar comida. Dele, continuou sem notícias.
Quando os jovens estudantes chegaram a Sanfins, os filhos de Mavilde eram os únicos a frequentar a escola. Apesar de localizada a uma distância de cinco quilómetros e de haver, a meio do percurso, um cemitério que lhe causava arrepios, mal a luz do dia surgia, dizia para si mesma: “não tenho medo, não tenho medo” e corria para ir deixar os garotos na escola. Este gosto pela aprendizagem permitiu-lhe não dar importância ao que a vizinhança dizia acerca dos jovens estudantes. “Eles eram muito boas pessoas. Levavam frango e feijão-frade para nós comermos. A minha filha Isilda nunca tinha comido carne”. Rosário Melo recorda que depois de chegarem, concluíram ser melhor falar com o padre para os ajudar a realizarem uma sessão de esclarecimento. Ele acabou por concordar, organizando tudo, também graças à insistência de Mavilde nesse sentido. “Começámos com muita gente. Durante as aulas, oferecíamos chá e biscoitos. Penso que, apesar de tudo, se as coisas correram melhor connosco do que com outras brigadas isso teve a ver com o facto de, enquanto lá estivemos, irmos sempre à missa e nunca especificarmos quais os partidos com que simpatizávamos quando falávamos de política.” Pese embora a debandada originada pelas vozes que os apontavam como comunistas, alguns permaneceram e aprenderam a ler. Mavilde não passou a escrever com desenvoltura, mas consegue ler “quando a letra é de máquina, à mão é que nem sempre. Ainda hoje estive a ler a Bíblia”. “Ela era a única cujos filhos continuavam a estudar para lá da 4ª classe e, no entanto, era a que vivia pior na aldeia por se recusar a trabalhar por apenas dez escudos”, diz Rosário.
Rumo à capital
Em Outubro de 1974, Mavilde ganhou asas. Um dos estudantes propôs-lhe que fosse para a Carvoeira, perto da Ericeira. “O menino Carlinhos, afilhado do Spínola, disse que eu viesse que me arranjava trabalho na terra e os meus filhos podiam ir para a escola. Mas quando vim para a casa do menino Zezinho, também apanhava dos restos para dar aos meus filhos. Acabaram por não me dar as terras para eu trabalhar e puseram-me a fazer limpezas sem me pagarem nada. Como protestava, começaram a dizer que me levavam de volta para a terra. Escrevi à directora da escola onde os meus filhos andavam, em Mafra, a explicar tudo. Ela deu-me logo dois ou três pacotes de leite e tratou de me arranjar casa cá, por 300 escudos”. Empregou-se num asilo, onde recebia 310 escudos. Nas folgas, “ia trabalhar noutras casas, ia para o matadouro, o meu Patricío (o filho do meio) ajudava e o povo também. Até que o comandante da GNR viu que eu era séria e trabalhava muito e quis ajudar-me. Eu era poupada. Na escola davam-me o almoço e eu lavava a loiça e trazia uns papo-secos. Deram-me um fogãozinho a petróleo, começou a espalhar-se que eu estava sozinha com as crianças e todos foram dando uma ajuda. Quando fui para o asilo não havia horários, lavava a roupa de cem velhotes, lavava a loiça, limpava o chão. ‘Dizei as coisas’, dizia eu às outras. Estive 15 anos no asilo, estive 15 anos no inferno, eram cabras…Não os velhinhos, coitadinhos, mas elas. Mas Deus deu-me mais sorte e aos meus filhos que aos filhos delas. Cabras! E à pior de todas, Deus já lhas fez pagar, que teve um acidente e partiu as pernas”. Para Mavilde as coisas são assim mesmo: Deus escreve direito por linhas tortas. Por isso, recompensou todo o seu penar. Colocou-lhe um homem endinheirado no destino. Meteu-se ao caminho, foi ter com o marido a França e disse-lhe: “Isto agora vai ser diferente. Se vens, vens; se não vens quero o divórcio”. Divorciou-se. “Casei-me novamente. Estive casada sete anos e há outros sete que sou viúva”. Quando o segundo marido morreu, a enteada, que nunca visitava o pai, apareceu a reclamar a herança. Mavilde tinha direito a três quartos dos bens, mas prescindiu dos terrenos por o marido sempre lhe ter dito que queria que ficassem para os netos. Apesar do respeito pela vontade do defunto, a enteada queria mais e ela ameaçou dar-lhe uma bofetada se não se calasse e “ela calou-se!”.
Vive bem. É rica. Os homens rondam-lhe a casa, mas ela não é tola. Fá-los penar. Conforme vão passando do lado de fora da sua casa térrea encrostada no quartel da GNR e que mantém pintadinha e confortável, vai comentando os passeantes. Tem um posto de vigia da sua janela. No telhado pôs pombas de porcelana e na fachada amarela andorinhas e um Santo Cristo de Ponta Delgada que descobriu numa loja de ferragens, porque “gosto muito de ter o que os outros não têm”. Às visitas senta-as em cadeiras, para preservar o sofá para os seus companheiros Boby, Ri e Andorinha, três rafeiros minorcas que ladram em uníssono e reclama de seus “companheiros”. Os filhos estão bem. O António é polícia em Loures, “mas não anda na rua, está na esquadra a fazer escritório, está lá dentro a passar os papéis”. O Patrício é médico, “fez Farmácia e ao fim de três anos foi para médico. Passou-as…poupou muito e passou fome. Casou com uma madeirense, também médica” e só lamenta que se tenha divorciado de uma nora de quem até gostava, porque isso a afastou do neto e “de avião ou de barco não vou, ninguém me lá vê”, embora já tenha deixado o filho levar um dos cães até à Madeira. A mais nova, Isilda, fruto da flausinante visita do primeiro marido, “estava a estudar à noite quando conheceu um rapaz que estava na tropa e foi amor à primeira vista. Disse-lhes: ‘se gostam um do outro, namorem lá, mas não façam asneiras’. Não fazem, não…Ela já levava um filho na barriga há três meses. Acabou por casar aos 18 anos, contra a vontade da sogra, que lhas fez passar muitas”. Vive em Santarém, é auxiliar numa escola e o marido largou a tropa para ir para a polícia, pertencendo às Brigadas de Trânsito.
No próximo dia 1 de Maio, Mavilde realizará o seu almoço anual, este ano adiado por uns dias, com a Senhora Rosária, a Senhora João ( Jonita Ralha) e o Senhor João Médico (João Pereira de Almeida), os jovens estudantes que em 1974 lhe ensinaram as letras. Talvez os filhos apareçam. Todos três sabem que este é um almoço muito importante para a mãe, que diz com a persistente alegria que lhe dá força e saúde: “Estou muito contente com o 25 de Abril, mas também com eles (os “senhores”), porque se não fossem eles, a esta hora estava morta!”.
“São vocês que vêm ensinar as pessoas a ler? É que eu quero, porque não sabia ver as horas e um dia pus um relógio à minha frente e não saí de lá sem saber ver as horas. Agora quero aprender a ler!”. Rosário Melo, uma jovem estudante que, à semelhança de muitos outros, integrou as campanhas de alfabetização durante as férias do Verão de 1974, jamais esquecerá a abordagem daquela mulher analfabeta do lugar de Sanfins, com quem almoça quase todos os anos, desde há dez, no dia 25 de Abril.
“Pus-me a pé a umas oito horas e diziam que em Lisboa tinha havido por lá uma revolução”, recorda Mavilde no seu modo particular de rememorar os tempos idos. Mas em lugar de Sanfins não se passou nada, como se essa tal revolução fosse mesmo apenas e somente uma coisa vivida na distante capital. Até ao mês de Agosto, quando verdadeiramente tudo mudou. “Vieram dizer-me que andava um grupo de estudantes de Lisboa que ia ensinar o que eram os partidos e a ler e a escrever. Perguntaram-me se eu queria e eu disse que sim. Passados uns dias, começaram a dizer: ‘não vamos que são comunistas, não vamos que são comunistas’ e deixaram de ir por causa disso. A mim não me interessava que fossem do que fossem. Deram-me a graça de Deus. Queriam que eu deixasse de ir porque tinham medo do que me pudesse acontecer. ‘Não vás, que dou-te uma rasa de grão’ (o equivalente a um alqueire, ou seja, cerca de 16 kg de milho). Tinham medo que eu corresse perigo, mas eu comia aquilo, e depois? Os ricos queriam era que a gente trabalhasse de graça”. Menos saber ajuda a controlar a insubordinação. Mas Mavilde nunca foi mulher de virar as costas à vida, e quando considerou que não continuaria a trabalhar a troco de uma côdea de pão que não chegava para encher, sequer, a boca de um dos filhos, quanto mais dos três, bateu o pé. Bem cara lhe saiu a atitude, que ver os filhos a passar fome é doloroso demais para qualquer mãe.
Ousem lá dizer a esta minhota que no tempo do Salazar é que era bom, que vão ver. Se há quem tenha esquecido a fome que se passava, Mavilde não é certamente uma delas. “Passei muita, muita, fome!” diz constantemente, como uma reafirmação de si mesma, um sublinhado da gratidão que sente por aquilo que possui hoje. Viveu uma fome tão constante e grande que, “quando passava o homem da sardinha a apitar a gaita, eu punha-me a cantar muito alto para os meus filhos não ouvirem e as vizinhas não perceberem que eu não tinha dinheiro para comprar. Passei muita fome”. Em 1965, tinha então 31 anos, viu o marido partir “a monte” para França, com a ajuda de um passador a quem pagaram 14 “contos”. Desse montante que ajudou a reunir nunca recebeu o retorno. Durante quatro anos e quatro meses bem contados por Mavilde, nunca o homem lhe mandou um tostão, e notícias vazias do essencial só muito de quando em vez, umas cartas que pedia “ao povo amigo” lhe lessem. Com um filho de 22 meses e outro de 14, foi trabalhar para as terras “dos ricos” levando-os consigo sempre que possível. “Quando podia, metia ao bolso pãozinho e o que pudesse para dar aos filhos. Uma vizinha, que tinha um marido feiinho mas muito poupado, que também estava em França, ia-me ajudando e quando não podia, fazia a comida e chamava-me para ir lá comer com os meus filhos. O frio que a gente passava…A fome que a gente passava…”. Quando, em 1969, o marido voltou de férias para ver os filhos, instalou uma francesa, que entretanto por lá arranjara, em Aveiro, e a quem dizia ser viúvo. “Ela queria conhecer os filhos e ele dizia-lhe que viviam com uma madrinha”, mas a mentira tem perna curta e Mavilde apercebeu-se da marosca, embora ele fosse à aldeia e dormisse com ela. “Arranjou-me a filha e foi-se embora. Antes, ofereceu-me um fio de ouro, grosso, e comprou outro para a francesa, mas mais fininho”, relata entre gargalhadas, acrescentando que rapidamente o vendeu para comprar comida. Dele, continuou sem notícias.
Quando os jovens estudantes chegaram a Sanfins, os filhos de Mavilde eram os únicos a frequentar a escola. Apesar de localizada a uma distância de cinco quilómetros e de haver, a meio do percurso, um cemitério que lhe causava arrepios, mal a luz do dia surgia, dizia para si mesma: “não tenho medo, não tenho medo” e corria para ir deixar os garotos na escola. Este gosto pela aprendizagem permitiu-lhe não dar importância ao que a vizinhança dizia acerca dos jovens estudantes. “Eles eram muito boas pessoas. Levavam frango e feijão-frade para nós comermos. A minha filha Isilda nunca tinha comido carne”. Rosário Melo recorda que depois de chegarem, concluíram ser melhor falar com o padre para os ajudar a realizarem uma sessão de esclarecimento. Ele acabou por concordar, organizando tudo, também graças à insistência de Mavilde nesse sentido. “Começámos com muita gente. Durante as aulas, oferecíamos chá e biscoitos. Penso que, apesar de tudo, se as coisas correram melhor connosco do que com outras brigadas isso teve a ver com o facto de, enquanto lá estivemos, irmos sempre à missa e nunca especificarmos quais os partidos com que simpatizávamos quando falávamos de política.” Pese embora a debandada originada pelas vozes que os apontavam como comunistas, alguns permaneceram e aprenderam a ler. Mavilde não passou a escrever com desenvoltura, mas consegue ler “quando a letra é de máquina, à mão é que nem sempre. Ainda hoje estive a ler a Bíblia”. “Ela era a única cujos filhos continuavam a estudar para lá da 4ª classe e, no entanto, era a que vivia pior na aldeia por se recusar a trabalhar por apenas dez escudos”, diz Rosário.
Rumo à capital
Em Outubro de 1974, Mavilde ganhou asas. Um dos estudantes propôs-lhe que fosse para a Carvoeira, perto da Ericeira. “O menino Carlinhos, afilhado do Spínola, disse que eu viesse que me arranjava trabalho na terra e os meus filhos podiam ir para a escola. Mas quando vim para a casa do menino Zezinho, também apanhava dos restos para dar aos meus filhos. Acabaram por não me dar as terras para eu trabalhar e puseram-me a fazer limpezas sem me pagarem nada. Como protestava, começaram a dizer que me levavam de volta para a terra. Escrevi à directora da escola onde os meus filhos andavam, em Mafra, a explicar tudo. Ela deu-me logo dois ou três pacotes de leite e tratou de me arranjar casa cá, por 300 escudos”. Empregou-se num asilo, onde recebia 310 escudos. Nas folgas, “ia trabalhar noutras casas, ia para o matadouro, o meu Patricío (o filho do meio) ajudava e o povo também. Até que o comandante da GNR viu que eu era séria e trabalhava muito e quis ajudar-me. Eu era poupada. Na escola davam-me o almoço e eu lavava a loiça e trazia uns papo-secos. Deram-me um fogãozinho a petróleo, começou a espalhar-se que eu estava sozinha com as crianças e todos foram dando uma ajuda. Quando fui para o asilo não havia horários, lavava a roupa de cem velhotes, lavava a loiça, limpava o chão. ‘Dizei as coisas’, dizia eu às outras. Estive 15 anos no asilo, estive 15 anos no inferno, eram cabras…Não os velhinhos, coitadinhos, mas elas. Mas Deus deu-me mais sorte e aos meus filhos que aos filhos delas. Cabras! E à pior de todas, Deus já lhas fez pagar, que teve um acidente e partiu as pernas”. Para Mavilde as coisas são assim mesmo: Deus escreve direito por linhas tortas. Por isso, recompensou todo o seu penar. Colocou-lhe um homem endinheirado no destino. Meteu-se ao caminho, foi ter com o marido a França e disse-lhe: “Isto agora vai ser diferente. Se vens, vens; se não vens quero o divórcio”. Divorciou-se. “Casei-me novamente. Estive casada sete anos e há outros sete que sou viúva”. Quando o segundo marido morreu, a enteada, que nunca visitava o pai, apareceu a reclamar a herança. Mavilde tinha direito a três quartos dos bens, mas prescindiu dos terrenos por o marido sempre lhe ter dito que queria que ficassem para os netos. Apesar do respeito pela vontade do defunto, a enteada queria mais e ela ameaçou dar-lhe uma bofetada se não se calasse e “ela calou-se!”.
Vive bem. É rica. Os homens rondam-lhe a casa, mas ela não é tola. Fá-los penar. Conforme vão passando do lado de fora da sua casa térrea encrostada no quartel da GNR e que mantém pintadinha e confortável, vai comentando os passeantes. Tem um posto de vigia da sua janela. No telhado pôs pombas de porcelana e na fachada amarela andorinhas e um Santo Cristo de Ponta Delgada que descobriu numa loja de ferragens, porque “gosto muito de ter o que os outros não têm”. Às visitas senta-as em cadeiras, para preservar o sofá para os seus companheiros Boby, Ri e Andorinha, três rafeiros minorcas que ladram em uníssono e reclama de seus “companheiros”. Os filhos estão bem. O António é polícia em Loures, “mas não anda na rua, está na esquadra a fazer escritório, está lá dentro a passar os papéis”. O Patrício é médico, “fez Farmácia e ao fim de três anos foi para médico. Passou-as…poupou muito e passou fome. Casou com uma madeirense, também médica” e só lamenta que se tenha divorciado de uma nora de quem até gostava, porque isso a afastou do neto e “de avião ou de barco não vou, ninguém me lá vê”, embora já tenha deixado o filho levar um dos cães até à Madeira. A mais nova, Isilda, fruto da flausinante visita do primeiro marido, “estava a estudar à noite quando conheceu um rapaz que estava na tropa e foi amor à primeira vista. Disse-lhes: ‘se gostam um do outro, namorem lá, mas não façam asneiras’. Não fazem, não…Ela já levava um filho na barriga há três meses. Acabou por casar aos 18 anos, contra a vontade da sogra, que lhas fez passar muitas”. Vive em Santarém, é auxiliar numa escola e o marido largou a tropa para ir para a polícia, pertencendo às Brigadas de Trânsito.
No próximo dia 1 de Maio, Mavilde realizará o seu almoço anual, este ano adiado por uns dias, com a Senhora Rosária, a Senhora João ( Jonita Ralha) e o Senhor João Médico (João Pereira de Almeida), os jovens estudantes que em 1974 lhe ensinaram as letras. Talvez os filhos apareçam. Todos três sabem que este é um almoço muito importante para a mãe, que diz com a persistente alegria que lhe dá força e saúde: “Estou muito contente com o 25 de Abril, mas também com eles (os “senhores”), porque se não fossem eles, a esta hora estava morta!”.
Hoje não almoço em casa.Tínhamos mesmo o destino marcado. Nunca mais nos largámos.
À Mavilde, à Senhora João e ao Senhor João Médico, a nossa história. À Guiomar, o nosso Obrigado por tê-la escrito tão bem.
Foi Deus que vos pôs no meu caminho,
porque Deus, sozinho, por mim não fazia porra nenhuma.
Mavilde
25 de Abril 1999
porque Deus, sozinho, por mim não fazia porra nenhuma.
Mavilde
25 de Abril 1999
Nunca é demais lembrar.
Hoje, a minha homenagem a Miguel Portas, a quem gostava de ter contado esta história.
Em 2013, o 25 de Abril é diferente, muito diferente.
Hoje, a minha homenagem a Miguel Portas, a quem gostava de ter contado esta história.
Em 2013, o 25 de Abril é diferente, muito diferente.
3 comentários:
Arriscamo-nos a eternizar agradecimentos. Escrevo com e por prazer. Gosto de pessoas. Gosto particularmente de Pessoas com vidas sérias e realmente importantes, que sabem rir. Só as "cozinho" num forno de prosa, em forminhas com esboço de texto. Tento contá-las com seriedade e rigor naquelas letras "de máquina" que a Mavilde consegue ler. Para mim é fácil e muito bom. Sabe-me a Liberdade e Justiça. O mérito é, e sempre foi, da matéria prima.
ok, agora percebi! g.
texto com cheirinho a verdadeiro Abril com todo o carinho que só a solidariedade tem. Excelente e comovente
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